Há 16 anos de impunidade, vítimas do caso “10 Irmãos” aguardam punição dos acusados, um deles é ex-vice-governador de Roraima

Reportagem Especial – Violência contra os Povos Indígenas

Reportagem produzida pelo Departamento de Comunicação do CIR

Fotos: Ascom/CIR / 28 de Junho de 2024.

“Até hoje estou sofrendo. Passei uns quatro, cinco anos com essa dor e tudo roxo aqui atrás [mostrou as marcas nas costas], não podia nem mexer, até hoje. Tudo dói aqui, na minha costa, por conta do cano da espingarda, quando ele deu as coronhadas e com o pé em cima de mim”, esse é o relato recente, de uma das vítimas do caso “ 10 Irmãos”, ocorrido no dia 5 de maio de 2008, há 16 anos, na terra indígena Raposa Serra do Sol.

Esse ato de violência extrema aconteceu no auge da retirada dos invasores da Raposa Serra do Sol, em 2008, após a homologação em 15 de abril de 2005, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva por meio da Portaria nº 534, do Ministério da Justiça, determinando a saída de ocupantes não indígenas do território.

No mesmo ano (2008), acontecia a operação da Polícia Federal Upaatakon III para a retirada dos invasores, mas, por um pedido do ex-governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (falecido) e de um grupo de fazendeiros que resistiam em sair do território, a operação foi suspensa até o julgamento do mérito das ações que contestava a legalidade da terra indígena Raposa Serra do Sol.  Uma das ações era a ação popular ajuizada pelo ex-senador de Roraima, Augusto Affonso Botelho Neto, que pedia a nulidade da Portaria nº 534 do Ministério da Justiça.

Depois de um longo e exaustivo processo de julgamento interrompido diversas vezes, o caso voltou à tribuna da Corte em agosto de 2008, com a sustentação oral da primeira advogada indígena no Brasil, Joenia Wapichana, atual presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Foi a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação na maior Corte do país.

Sustentação oral da primeira advogada indígena no Brasil, Joenia Wapichana, no STF. (Foto:Gervásio Batista)

O julgamento do caso Raposa Serra do Sol, considerado um caso emblemático no Brasil, foi concluído em 19 de março de 2009, com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), reafirmando a homologação em área contínua com 1.747.464 hectares e destinando a posse exclusiva aos povos originários Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona e Ingarikó.

Foi nesse impasse de decisões judiciais que os casos de violências foram aumentando e o caso “ 10 Irmãos”, tornando-se mais um caso de atentado contra a vida dos indígenas que ali estavam naquela atividade de retomada do território.  “ 10 Irmão” não faz referência a uma relação biológica, de parentesco, mas de laço afetivo e ancestral, a partir de um grupo composto por indígenas de diferentes comunidades unidos em uma atividade coletiva de reocupação de território, marcados pela violência praticada pelos invasores no dia 5 de maio de 2008.

O ataque ocorreu durante um trabalho coletivo, quando um grupo de indígenas foi alvejado com tiros de espingardas e bombas caseiras. Foram 10 indígenas baleados e violentados, e até hoje, convivendo com sequelas severas, como balas alojadas no corpo, dores de cabeça, perda de memória e trauma psicológicos.

As vítimas aguardam a punição dos acusados, um deles é o ex-vice-governador de Roraima(2014), Paulo César Quartiero, conforme apontado na denúncia e incluída nos autos do processo criminal que aguarda julgamento na 4ª Vara Federal Criminal da Justiça Federal de Roraima. Paulo César também foi deputado federal na legislatura de 2011 a 2015, mas renunciou, para assumir o cargo no governo do Estado, em 30 de dezembro de 2014.

Para apurar as condições das vítimas e das testemunhas em seus territórios, como vivem, quais sequelas das agressões foram deixadas e qual atenção têm recebido por parte do Estado brasileiro, além de dar voz ao pedido de justiça, a equipe de comunicação do Conselho Indígena de Roraima (CIR) foi até a terra indígena Raposa Serra e ouviu três das 10 vítimas, além de duas testemunhas.

Mantendo a segurança das vítimas e testemunhas, os nomes serão preservados. Uma das vítimas, ouvida no período da audiência no Ministério Público Federal (MPF), no dia 8 de maio deste ano, foi um dos mais agredidos no ataque. Ele levou tiros, coronhadas de espingarda na costa e foi pisoteado.

“Até hoje estou sofrendo” 

A vítima é agricultor, tem 8 filhos, possui criação de gado e um retiro, onde passa a maior parte do tempo. Ao ser indagado sobre a sua condição física e psicológica, depois do ataque, a vítima disse que não vive bem como antes.  “Eu não estou vivendo bem como era antes, estou com o peito machucado. Não vivo como era antes, estou muito machucado”, disse, cabisbaixo, em suas primeiras palavras ao relembrar o caso que ocorreu há 16 anos. Durante a entrevista, mostrou as marcas dos tiros e coronhadas nas costas.

No dia do ataque, relembrou que chegaram ao local por volta das 5h da manhã, e como um dia comum de trabalho coletivo, depois do café, começaram a cavar buraco, cortar madeira e fazer outros tipos de trabalho. Em seguida, por volta das 7h, chegaram os primeiros dois jagunços de moto, que ficaram observando o grupo de indígenas, depois reforçaram com a vinda de mais jagunços, começando o ataque brutal de tiros de espingarda calibre 12 e 38, além das bombas caseiras, segundo ele.

“O primeiro tiro que ele me deu, perto da cabeça, eu cai. Ele me cacetou desse lado dando coronhada com o cano da espingarda. Fiquei lá, caído, ele parou em cima de mim, ficou me furando com o cano da espingarda nas minhas costas, do que jeito que caí, fiquei. E ele mandando atirar”, relembrou os momentos de terror que passou sendo pisoteado e ouvindo os ataques a mando do jagunço conhecido como “Mineiro ” .Ele dizia assim: “ eu te mato, caboco!”. E outro também atirando, dizia: “Acaba de matar, solta a bomba, meu cartucho está acabando. Ele com o pé em cima de mim”, contou ele [vítima] e “por sorte não atirou mais porque o cartucho tinha acabado”.  

“Na hora que soltaram a bomba, o povo saiu e eu fiquei sozinho, o pessoal correu, deixaram só as panelas. Eu disse ‘agora vão acabar de me matar, se não matar, não mata mais’”, relembrou o ataque, que parou somente com a chegada da Polícia Federal depois de mais de uma hora.

“Até hoje estou sofrendo. Passei uns quatro, cinco anos com essa dor e tudo roxo aqui atrás [mostrou as marcas na costa], não podia nem mexer, até hoje. Tudo doi aqui, na minha costa, por conta do cano da espingarda, quando ele deu as coronhadas e com o pé em cima de mim”, contou, uma das vítimas, hoje, com 74 anos, e que apesar da demora do julgamento, ainda acredita na justiça. Após os ataques, recebeu atendimento médico, mas depois não teve mais nenhuma assistência.

A roça é a sua principal fonte de subsistência. (Foto: Ascom/CIR)

Outra vítima que convive com sequelas até hoje, mora na comunidade indígena Maturuca. Ao chegar em sua residência, a reportagem o avistou de longe, juntamente com a esposa, na pequena área destinada para o plantio de roça, a sua principal fonte de subsistência.

Depois do ataque, sente dores na perna devido ao tiro que levou, inclusive acredita que tem bala alojada ainda. Até pouco tempo, sentia os movimentos de fragmentados de bala na área atingida.

Durante a entrevista, ele [vítima] sentiu dores na coluna, um incômodo que sempre sente quando fica sentado por muito tempo. Ao relembrar o dia, frisou que ali (local do ataque), sempre foi território indígena, terra por onde seus pais e avós passaram na época em que era livre, podia pescar, caçar e depois foi ocupada por gente que “só atrapalhou”. “Ali é nossa terra mesmo. Antes, nossos pais, avós, já conheciam há muito tempo aquela área ali. Uma área de pesca, caça, não tinha ninguém para empatar, era livre. Depois que chegou esse arrozeiro, chegou atrapalhando não deixando mais ninguém, ele dizia que era dono”, relembra.

A reportagem perguntou se, mesmo com a violência que aconteceu, a luta pela terra valeu a pena e ele respondeu, incisivamente, que sim. “Eu digo que valeu sim, porque tem os lugares que estão ocupados, pessoal criando os animais, esses fazendeiros saíram. Antes não era assim, era gado na roça dos parentes, eles queriam ver a gente lascados”, disse comparando o período em que havia os fazendeiros e agora, com o território livre.

“Levei mais de dois tiros, nas pernas e na boca. Foi feito cirurgia com 22 pontos para tirar a bala”, contou, mostrando as cicatrizes. Disse também que sente dores nas pernas, principalmente quando o clima fica frio. “Eu sofro mais da perna quando eu ando. Canso, sinto muito frio”, contou o morador, que à época solicitou auxílio-doença, mas não conseguiu e agora está com pedido de aposentadoria em andamento no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).

Segundo ele, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acompanha o pedido feito ao INSS. A equipe solicitou informações junto ao órgão indigenista para apurar informações sobre o andamento do pedido, mas até a data do fechamento desta reportagem, não enviaram a resposta. O espaço ficará disponível para posicionamento.

“Se ele morrer quem vai me sustentar, sustentar meus filhos?”

No vídeo, gravado por um cinegrafista indígena do povo Wapichana que fazia os registros dos trabalhos coletivos no dia do ataque, aparece uma senhora, esposa de uma das vítimas, lamentando o ataque. O vídeo teve grande repercussão, até chegar ao conhecimento do STF.

Em meio aos desesperos, ao ver seu esposo ensanguentado, ela perguntou “ se ele morrer quem vai me sustentar, sustentar meus filhos?”. Na correria do ataque, ao mesmo tempo que tentava socorrê-lo, também tentava proteger a sua filha de apenas 6 anos.

Durante a entrevista, foi visível a emoção, angústia e o medo, expressada na voz, gestos das mãos e no semblante.   “Na mesma hora criava coragem e na mesma hora ficava com medo, porque tinha minha filha de 6 anos. Se nós tivesse ido com certeza a gente teria pegado tiro”, contou ela, ao se recordar do ataque.

Ao referir-se às limitações físicas do esposo que antes plantava milho, arroz, mandioca, macaxeira e outros alimentos, contou que agora trabalha com bastante dificuldades.  “Meu marido trabalhava, plantava milho, arroz, mandioca, macaxeira, tudo, e agora pegou tiro, quem vai me sustentar? Será que esse Paulo vai sustentar meus filhos, falei assim. Acho que não”, relatou, visivelmente revoltada com a violência que ela e seu esposo sofreram.

A punição é uma reivindicação coletiva, ela também reforçou o pedido. “Ninguém foi preso mesmo não. Ele tem que ser preso, pelo menos sofrer como o meu esposo, o pessoal dele atirou. Tem que sofrer, pelo menos, 10 anos, mas ainda está solto”, lamentou, que os acusados ainda estejam soltos, principalmente Paulo Cesar Quartiero

“O que o Estado brasileiro vai fazer por nós. Tem lei ou não tem lei?”

Atual Tuxaua da comunidade Maturuca, Djacir Melquior, exercia a mesma função na época do ataque. (Foto: Ascom/CIR)

Uma das lideranças que acompanhou a reportagem foi Djacir Melquior, atual tuxaua da comunidade indígena Maturuca e na época exercia a mesma função. Ao comentar sobre a atual situação do território, enfatizou o trabalho na agricultura, bovinocultura e agora na piscicultura.

Afirmou terem assumido a responsabilidade da região, como Centro Regional Tuxaua Jacir José de Souza, local de onde originou-se o Conselho Indígena de Roraima (CIR), desde a luta de 1977, quando começou a caminhada e hoje, sendo uma referência nacional e internacional.

Relembrou que foram vários atos de violência como a destruição do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS), localizado na comunidade indígena Barro, região do Surumu, comunidades queimadas, pontes destruídas, assassinatos, e sempre atos que ficaram impunes, até acontecer, o que ele chamou de “tragédia”, o caso 10 Irmãos.

“O nosso povo, essas pessoas que sofreram esse atentado, hoje, têm dificuldade. Ficaram traumatizados, aqueles que pegaram tiros, perda da memória, então a gente está pedindo que as autoridades tomem providências. Já fazem 16 anos e ainda continua não tendo nada. Queremos que eles paguem, porque estamos sofrendo. Não é só às dez ou onze vítimas, mas todos nós estamos sofrendo com esse ataque e os outros. Querem arquivar, mas arquiva porque? Nenhum deles foi a óbito, mas estamos sofrendo sem poder trabalhar”, cobrou o Tuxaua, revoltado com a lentidão da justiça em dar celeridade no processo paralisando na 4ª Vara Criminal da Justiça Federal de Roraima.

“Hoje a gente ver que essas pessoas estão impunes como o Paulo César, esse foi mais que nos agrediu. Além de degradar nossa terra também teve esse derramamento de sangue. Então, como ainda essa pessoa está impune. Quem vai responder para nós, por que ele não foi preso? Foi preso e solto. O que ele destruiu, qual seria a indenização? Cadê o Ibama? Quem vai responder para nós. A gente está vendo que ele está livre, em outro estado, também degradando. “O que o Estado brasileiro vai fazer por nós. Tem lei ou não tem lei?”, questionou o Tuxaua, com várias perguntas sem respostas.

“É a própria justiça que tem fazer justiça, esperar por quem? A minha tristeza é que a justiça está muito devagar. As próprias autoridades somem. A justiça brasileira não gosta dos indígenas?

Outra vítima na comunidade indígena Maturuca, tem 43 anos, vive da agricultura, participa das atividades comunitárias e tem uma vivência ao lado da família, tranquila e inspirando o “bem viver”, como sempre dizem. A entrevista ocorreu debaixo do mangueiral, com cenário de serras, típico dessa região serrana, e ar livre.

Ao iniciar, relembrou o clima de tensão na época da homologação, como ele expressou, categoricamente, “o clima era Raposa Serra do Sol”. Uma liderança de poucas palavras logo confirmou sendo um dos “10 Irmãos” atacado com um tiro, no braço direito.

É um dos menos atingido fisicamente e aparenta viver sem tantas lembranças daquele dia. “O sangue derramado”, expressão que marca gerações de lideranças indígenas da Raposa Serra do Sol, para ele, foi “sangue de sacrifício”, pois conquistaram o território.

“Fui baleado, mas não como os demais. Eles [os jagunços] foram para expulsar a gente, mas não recuamos. Para nós foi bom porque ganhamos, saímos com vitória, apesar de serem baleados 10 Irmãos. Derramaram sangue, mas foi sangue de sacrifício”, afirmou.

Um dos procedimentos para dar celeridade ao processo é a fase de depoimentos tanto das vítimas quanto dos acusados. Durante essa fase, sete das dez vítimas foram ouvidas. As intimações não chegam até as vítimas e acabam sendo prejudicadas por não conseguirem prestar o seu depoimento.

A lentidão em intimar ou fazer com que chegue de fato até às vítimas e aos acusados também pode ser um dos fatores que causa demora.

“Peço às autoridades competentes que quando for intimar o indígena, que não demore muito. Isso é ruim, os advogados ficam adiando, por isso já está em 16 anos”, cobrou. A demora no processo favorece os acusados e prejudica as vítimas.

“É a própria justiça que tem fazer justiça, esperar por quem? A minha tristeza é que a justiça está muito devagar. As próprias autoridades somem. A justiça brasileira não gosta dos indígenas? São 16 anos e precisam tomar essa providência”, reforçou, lamentando a demora diante de duas décadas do ocorrido.

A condenação não apagará as marcas e os traumas das vítimas e testemunhas, mas deixará as comunidades indígenas mais aliviadas se for feita justiça.

Deixou uma profunda reflexão para a justiça brasileira, não só no caso dos 10 Irmãos, mas vários casos de violência contra os povos indígenas e que estão impunes. “ Se fosse eu, indígena, tivesse atirado no branco, eu estava preso com certeza. Agora como é uma pessoa como ele, fica impune, isso é a minha revolta, a minha indignação. Fica aí levando a vida como se não tivesse acontecido nada”, lamentou.

Uma das vítimas que mais sofreu com o ataque, tem bala alojada na perna, mora na comunidade Enseada, e luta pelo menos para garantir a aposentadoria. Ele compareceu à Comarca de Pacaraima por duas vezes, atendendo a intimação, mas sem muito sucesso, tendo que, inclusive, se deparar com advogados dos acusados tentando intimidá-lo, segundo informou.

Desapontado com o abandono da justiça, aguarda pelos próximos passos, mas o que espera muito é a sua aposentadoria. Agricultor, tem seu plantio de roça e criação de animais domésticos como meio de subsistência. Assim como os demais, há 16 anos, a única ajuda que recebeu foi da própria família e da comunidade.

Sentado na área externa da sua residência, relatou pouco sobre o ataque, mas demonstrou uma profunda sensação de missão cumprida pelos anos de luta pelo território. Citou as manifestações, atos, reuniões, assembleias e até a Batalha de Santa Cruz, na região da Raposa, que marcaram também a luta pela Raposa Serra do Sol. “Depois da homologação ficou mais calmo e não teve mais aquela correria”, lembrou, com expressão de quem já batalhou muito pela terra e agora usufrui do território homologado.

Durante a entrevista fez questão de mostrar à equipe a pasta de arquivo contendo laudos, intimações e outros documentos importantes, que guarda com zelo à espera da justiça. 

“Fico pensando, até quando vamos para audiência e falar o que já falamos? Vão ficar chamando toda vez, será que nós estamos mentindo? A gente espera por justiça”

Área do ataque no dia 5 de maio de 2008. (Foto: Ascom/CIR)

Para quem não esteve naquele dia, apenas acompanhou pelos noticiários, não deve imaginar o que foi aquele dia 5 de maio de 2008. Porém, para quem presenciou e viu seus parentes sendo baleados, crianças correndo, mulheres aos prantos e os tiros disparados, e até explosivos estourados, é uma lembrança que está muito viva na memória.

A reportagem pôde voltar ao local do ataque, acompanhada por duas testemunhas, que relembraram cada passo, cada momento de terror, que ali passaram.

A área fica localizada entre a comunidade indígena Barro e Renascer, próximo a antiga Fazenda Depósito, na estrada que dá acesso às outras comunidades da região Surumu, Serras, Baixo Cotingo e Raposa, nos municípios de Pacaraima, Normandia e Uiramutã.

Lugar de capim baixo, cheio de pedras e pequena mata ao redor, esse é o local que seria uma nova comunidade com a conquista da Raposa Serra do Sol, mas o local ficou conhecido como “10 Irmãos”, 10 indígenas baleados.

Mostrando uma das pedras que serviu de escora para uma das vítimas que ficou gravemente ferida, a testemunha relatou. “Foi aqui que foram batidos, baleados, tem aquela pedra onde ele [vítima]caiu”, relatou ao caminhar pela área. Ambas testemunhas caminharam no local, narrando o acontecimento, como se fossem naquele exato momento.

As pedras que serviram de proteção às vítimas baleadas. (Foto: Ascom/CIR)

Como visto no vídeo que circulou, narraram eles, “apareceu o bando deles por aqui e cercaram a gente. Ficaram encurralados e foram recebidos a tiros, bombas. Tinha em torno de 80 pessoas”, narraram.

No local foi encontrado pedaço de arame liso, ainda resultado do conflito. “O pessoal do Paulo César chegou e começou a atirar nas pessoas, estavam atrás dessas pedras, eram os escudos deles. E tudo encapuzado”, contou.

Ao parar, olhar para a área e relembrar o ataque, emocionado, disse que contou aos seus filhos sobre o ocorrido, com a esperança de que a justiça seja feita.

“Espero por justiça pelo o que a gente passou. Não gosto de lembrar muito, mas é muito triste, tinha 12 anos. ‘Eu lembro para os meus filhos. Via meus parceiros baleados queria partir para cima. Foram momentos difíceis, que dói no coração da gente. Era gente gritando, chorando. Eu carreguei o filho da dona Tereza na minha costa’. Fico pensando, até quando vamos para a audiência e falar o que já falamos? Vão ficar chamando toda vez, será que nós estamos mentindo? “A gente espera por justiça”, cobrou.

Ainda na comunidade indígena do Barro, a reportagem ouviu relatos de que dois dos acusados que participaram do ataque, casados com indígenas, vivem na região com comércio aberto, área de plantação e criação bovina, no território. Até o julgamento, não há como confirmar se de fato participaram do ataque.

O ataque aos 10 Irmãos soma-se a lista de ataques cometidos contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol, como a destruição das comunidades Homologação, Brilho do Sol e retiro Tai-Tai, incêndio ao Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS), queimada de pontes, morte de lideranças como Aldo da Silva Mota Macuxi e outras violências. Os indígenas temem que o ataque no dia 5 de maio, fique impune e os acusados, principalmente Paulo César Quartiero, à solta e inocentados dessa violência extrema.

 Considerando o histórico de violência contra os povos indígenas, sobretudo no Estado, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), ao longo da trajetória de 53 anos de atuação, tem sido uma organização fundamental e de apoio às comunidades indígenas frente aos desafios de demarcação e homologação dos territórios, mas também de garantir a segurança e proteção dos povos indígenas.

O tuxaua geral do CIR, Edinho Batista, ao comentar sobre o contexto, destacou que a organização já possui um processo movido contra o Estado Brasileiro em relação aos casos de violência contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol, tramitando na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos na Organização dos Estados Americanos (OEA), desde 2004, onde, além dos crimes ocorridos ao longo do processo de demarcação e homologação, também apontam a falta de proteção e fiscalização territorial. Disse que, enquanto organização com toda a sua legitimidade de ingressar na justiça, “têm a oportunidade de dar visibilidade à dívida histórica do Estado com os povos indígenas”.

“Com tantas violências que aconteceram e que nunca foram punidos, mas que agora a gente pode falar por nós, ingressar na justiça e isso nós temos como uma iniciativa que possa de fato mostrar para o Brasil e para o mundo que os povos indígenas são parte do Estado Brasileiro, são pessoas que de fato nunca invadiram território, nunca destruíram. Pelo contrário, somos legítimos e originários desse Estado”, afirmou Batista.

Também cobrou a responsabilização não só do caso “10 Irmãos”, mas também de outros que acabaram ficando impunes pela morosidade do Estado e também dos próprios acusados que tentaram de toda forma, driblar a justiça e ficar impunes.

No pedido à Comissão, solicitam que “ o Brasil reconheça e respeite afirmativa o direito dos povos indígenas da RSS à autodeterminação, autonomia e autogoverno, inclusive no que se refere a seus direitos territoriais, culturais e outros, e de acordo com a legislação e os costumes indígenas aplicáveis”, “ o Brasil deverá cumprir e, quando solicitado pelas autoridades indígenas, fazer cumprir os protocolos desenvolvidos pela RSS ou outros instrumentos similares sobre segurança e gestão territorial ou assuntos relacionados, e aqueles que estabelecem os requisitos substantivos e processuais para a obtenção do consentimento livre, prévio e informado”.

O Ministério Público Federal (MPF), autor da denúncia, ao se reunir com as vítimas e testemunhas no dia 8 de maio deste ano, comprometeu-se em atuar junto à Justiça Federal pedindo celeridade no processo.

Lideranças se reuniram com MPF em maio deste ano. (Foto: Acervo/CIR)

Conforme verificado o andamento do processo, no dia 10/5/24, o MPF encaminhou a ata da reunião e juntou aos demais documentos do processo que somam mais de 600 páginas. Na audiência, o procurador-chefe, Miguel de Lima, afirmou compromisso de atuar junto à Justiça Federal, para dar andamento no processo o mais breve possível. De acordo com os encaminhamentos da reunião, ficou acordado que, assim que houver o pedido de audiência com as vítimas, o MPF acionará o CIR para garantir a presença das lideranças indígenas.

Os atos de violência contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol não cessaram em 2008, recentemente, em 2021, em plena pandemia, a Polícia Militar e o Batalhão de Operações Policiais Especiais ( BOPE)  do Estado, agiram com truculência contra a comunidade indígena Tabatinga, durante a desinstalação forçada do posto de vigilância e monitoramento montado pela comunidade para coibir entrada de invasores e ações ilícitas.

Os policiais atacaram a comunidade com bomba lacrimogênea, atiraram com armas de fogo e bala de borracha. De acordo com a denúncia, o ataque feriu dez indígenas, dois idosos, uma mulher e um homem, que foi hospitalizado e passou por cirurgia para retirada de uma bala no peito.

As imagens dos vídeos gravados pelos moradores mostram a ação truculenta que atingiu crianças, mulheres e idosos. Um verdadeiro cenário de guerra do Estado contra os povos indígenas em seu território.

A violência e até assassinatos de indígenas se estendem nos outros territórios e em tempos atuais, conforme apontou o Relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), publicado em julho de 2023, apontando assassinatos ocorridos nos últimos quatro anos, de 2019 a 2022.  O levantamento apontou 281 indígenas assassinados em Roraima e no Brasil, 795 indígenas.

Conforme o levantamento, a média de indígenas assassinados no período de 2019 a 2022 em todo o país foi de 198, ou seja, 75 casos por ano. Segundo o trecho do relatório, os casos foram relacionados à luta pela terra. “ O ano foi marcado por uma série de conflitos e de assassinatos de lideranças e de indígenas ligados à luta pela terra e pela proteção de seus territórios”, diz o trecho.

“Nenhum destes crimes pode ficar impune. 16 anos é muito tempo, são muitos dias sem ter Justiça”

O secretário nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Luis Ventura, ao responder a reportagem a respeito do assunto, disse que é fundamental que o ataque contra as comunidades não fique impune. “É absolutamente fundamental que este ataque armado contra as comunidades indígenas da TI Raposa Serra do Sol não fique impune e que os executores e os mandantes sejam responsabilizados. Foi um ataque covarde, criminoso e com intenção de acabar com a vida das pessoas que ali estavam trabalhando e retomando legitimamente o território que era deles, das comunidades indígenas”, disse Ventura, ao lembrar os 21 indígenas assassinados durante o processo de luta pela recuperação da terra. “Muitos outros foram ameaçados, intimidados, perseguidos e muitos foram inclusive detidos e privados de liberdade pela ação das Polícias do estado em conluio com os invasores”, ressaltou.

Ao relembrar de casos que ficaram impunes, como em 2003, com o assassinato de Aldo Mota, e 2010, quando a violência contra as comunidades intensificou, apontou que as violências eram alicerçadas no poder econômico e político, além de serem uma retaliação às comunidades.

“Era uma violência alicerçada no poder econômico e político que um pequeno grupo de empresários tinha na época. E era uma violência de retaliação porque, naqueles anos, o processo de homologação da TI Raposa Serra do Sol avançou e o território foi homologado pelo governo federal em 2005”, contou Ventura, que residiu por mais de cinco anos da Raposa Serra do Sol e acompanhou de perto toda essa perseguição.

O ataque sobre os “10 irmãos”, no dia 05 de maio de 2008, aconteceu no contexto da judicialização da homologação da TI Raposa Serra do Sol, que tinha chegado até o STF e o julgamento não tinha sido iniciado. As comunidades estavam ocupando legitimamente seu território, como sempre fizeram, pacificamente e trabalhando, segundo Ventura. “É nesse contexto que algum mandante, que deve ser identificado, enviou seus jagunços para atirar, com bombas e com armas de fogo, sobre a vida dos indígenas”, disse.

“Nenhum destes crimes pode ficar impune. 16 anos é muito tempo, são muitos dias sem ter Justiça. A impunidade e a lentidão da Justiça são os principais combustíveis para que a violência continue, na TI Raposa Serra do Sol e em qualquer outro território indígena até os dias de hoje. A impunidade é o principal suporte do poder econômico e político que ainda possuem os principais responsáveis do ataque, seus mandantes.

A impunidade contribui com uma “naturalização” da violência contra os povos indígenas, em que o Estado e a sociedade acabam vendo como “normal” ou “natural” a violência contra os povos; e “isto é inadmissível”, apontou.

Para o Secretário do CIMI, o que aconteceu no dia 05 de maio na TI Raposa Serra do Sol continua acontecendo hoje em muitos outros territórios indígenas no país. No extremo sul da Bahia, no Mato Grosso do Sul, no oeste do Paraná, no Maranhão, em Rondônia e em tantos outros lugares. Inclusive hoje a violência contra as comunidades, em forma de ataques armados, chegou a um nível de articulação nacional com o chamado “Movimento Invasão Zero”, que até conquistou uma bancada dentro do Congresso Nacional.

“Por isso a Justiça deve agir no caso dos “10 Irmãos”, de forma célere e exemplar. Porque não é só por eles. Não é só para fazer justiça aos povos da TI Raposa Serra do Sol e aos 10 indígenas que foram feridos naquele dia; é também para enfrentar a violência e a impunidade que continuam sendo uma realidade em nossos dias em todo o país. O direito e a vida devem prevalecer, frente à violência e a morte”, cobrou Luís Ventura.

A reportagem não alcançou as 10 vítimas, neste primeiro momento, devido a distância entre as diferentes comunidades, mas conseguiu apurar in loco a vivência das lideranças e afirmar que, apesar da morosidade da justiça em julgar esse e outros casos de violência, a luta pela Raposa Serra do Sol não foi uma luta apenas pelo direito ao território, mas uma luta pela vida dessas e das futuras gerações.

A TI Raposa Serra do Sol, com 1.747. 464 hectares, atualmente, possui uma população de 32 mil indígenas, 233 comunidades, segundo dados do Distrito Leste de Roraima (Dsei/LRR), de 2023. O território é organizado em quatro regiões, Baixo Cotingo, Raposa, Surumu e Serras, localizadas nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã.

 

 

Produção orgânica é o potencial na RSS. (Foto: Amarildo Mota)

Nos últimos anos os povos indígenas vêm avançando na gestão territorial, ambiental, e na sustentabilidade, reforçando a pecuária, piscicultura, agricultura e outras formas de produção orgânica. Em março de 2024, as lideranças indígenas publicaram o Protocolo de Consulta da terra indígena Raposa Serra do Sol e continuam avançando na construção do regimento interno, para fortalecer a autonomia e a organização social das comunidades indígenas.

O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), também é um instrumento consolidado das comunidades e aos poucos vem buscando a implementação. Dessa forma, os povos indígenas da Raposa Serra do Sol e de Roraima  reforçam ao Brasil e ao mundo, que a luta pelo território há mais de 40 anos, é uma luta pelo bem viver coletivo e garantia de vida das atuais e futuras gerações.