Caso “10 Irmãos”: 16 anos de violência contra os povos da Raposa Serra do Sol e acusados continuam impunes

Em audiência no MPF, vítimas e testemunhas, pedem celeridade no processo e punição dos acusados.

Um dos casos extremos de violência contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol, o caso dos “10 Irmãos”, completou 16 anos, no último domingo, 5 de maio, e o principal acusado, o ex-governador de Roraima, Paulo César Quartiero, além dos demais acusados de cometerem o crime de tentativa de homicídio, continuam impunes.

O caso 10 Irmãos, ficou conhecido em 2008, depois de um ataque a um grupo de lideranças indígenas, que realizavam um trabalho coletivo de reocupação do território, nas proximidades das comunidades indígenas Renascer e Barro, região Surumu. O fato ocorreu no auge da retirada de não indígenas da Raposa Serra do Sol, tendo como último invasor, Paulo César Quartiero, que resistiu até o momento, em que o Supremo Tribunal Federal (STF), obrigou a sua saída do território.

Após 16 anos de tramitação na Justiça Federal de Roraima, o caso ganhou um novo capítulo. No dia 08 de maio de 2024, o grupo de indígenas covardemente atacados, naquele dia 5 de maio, entre vítimas e testemunhas, tiveram uma audiência no Ministério Público Federal (MPF), autor da ação, para cobrar celeridade no andamento do processo e pedir a responsabilização dos culpados.

O ataque aos 10 Irmãos soma-se a lista de ataques cometidos contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol, como a destruição das comunidades Homologação, Brilho do Sol e retiro Tai-Tai, incêndio ao Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS), queimada de pontes, morte de lideranças como Aldo da Silva Mota Macuxi e outras violências. Os indígenas temem que o ataque no dia 5 de maio, fique impune e os acusados, principalmente Paulo César Quartiero,  à solta e inocentados dessa violência extrema.

A audiência, acompanhada pela assessoria jurídica do Conselho Indígena de Roraima (CIR), durou pelo menos duas horas, no auditório da instituição. O grupo de 10 indígenas e demais lideranças, depois de anos esquecidos pela justiça, foram recebidos pelo procurador- chefe do MPF, Miguel de Almeida Lima e pelo procurador do 7° Ofício,  que cuida das questões indígenas e ambientais, Alisson Marugal. 

A audiência, acompanhada pela assessoria jurídica do (CIR, durou pelo menos duas horas, no auditório da instituição. Fotos: ASCOM/CIR

Durante a audiência, imagens chocantes do ataque foram exibidas, com tiros de armas calibre 12 e 38, bombas caseiras despejadas em cima do grupo, lideranças feridas e mulheres gritando pelos seus filhos e esposos, alvejados pelo covarde ataque. Com olhares fixados na tela, as lideranças relembraram o dia 5 de maio, e levaram ao conhecimento das autoridades esse dia sangrento que ficará marcado em suas memórias. O silêncio e a emoção tomaram conta do ambiente. Entre as lideranças, esteve também o coordenador geral das Serras, da terra indígena Raposa Serra do Sol, Amarildo da Silva Mota, filho do líder indígena Aldo Mota, morto em 2003, em uma emboscada. Amarildo lembrou que o ato do dia 5 de maio é mais um que já acontece há 524 anos, quando tentaram exterminar os povos indígenas do Brasil. Ao pedir justiça, Mota questionou a falta de justiça para o lado dos povos indígenas e indagou. “Se fosse ao contrário, já tinha liderança preso. Já faz 16 anos e nunca tivemos uma resposta”, cobrou. “Por que essa injustiça para o nosso lado? Com certeza, se fosse as comunidades indígenas, já tinha liderança preso. Então viemos aqui pedir justiça, em busca do nosso direito”, cobrou o coordenador regional. Amarildo reforçou que os tiros que acertaram os indígenas “ não eram de borracha, mas de chumbo”, como apurado no processo. “O nosso único objetivo é ocupar o que é nosso. Antes, nós não podíamos caçar, pescar e tinha muita poluição ambiental, conseguiram acabar com os nossos igarapés, rios, e hoje, queremos ver a nossa terra recuperada”, considerou, a importância da luta pelo território e que todo sofrimento não foi em vão. 

Com olhares fixados na tela, as lideranças relembraram o dia 5 de maio, e levaram ao conhecimento das autoridades esse dia sangrento que ficará marcado em suas memórias.  FOTOS: ASCOM/CIR

A professora Tereza Makuxi, presente no dia 5 de maio, indignada pela impunidade dos casos de violência, especialmente dos “ 10 Irmãos”, não exitou em reafirmar o motivo de tanta luta pelo território, como a preservação ambiental, dos rios e lagos, além da vivência livre e coletiva. Mãe de uma vítima menor, Tereza cobrou da justiça mais atenção.

“ Queremos ser mais ouvidos, queremos ser mais atendidos e nós queremos justiça”, reforçou Tereza, ao cobrar justiça frente ao caso, ocorrido há 16 anos e nenhuma resposta dada aos indígenas. Teresa, também pediu indenização aos povos que sofreram e derramaram sangue, como o seu filho, à época menor, vítima do atentado.

“ Nós nunca fomos com arma, nós nunca matamos e nunca derramamos sangue de nenhum não indígena, mas nós derramos o nosso sangue. E hoje, sentimos muito”, concluiu, questionando os repetidos depoimentos dados à justiça e que não fizeram efeito ao caso, até hoje.    

Considerando o histórico de violência contra os povos indígenas, sobretudo no Estado, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), ao longo da trajetória de 53 anos de atuação, tem sido uma  organização fundamental e de apoio às comunidades indígenas frente aos desafios de demarcação e homologação dos territórios, mas  também de garantir a segurança e proteção dos povos indígenas.

O tuxaua geral do CIR, Edinho Batista, ao comentar sobre o contexto, destacou que a organização já possui um processo movido contra o Estado Brasileiro em relação aos casos de violência contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol, tramitando na Organização dos Estados Americanos (OEA), desde 2004, onde, além dos crimes ocorridos ao longo do processo de demarcação e homologação, também apontam a falta de proteção e fiscalização territorial. Disse que, enquanto organização com toda a sua legitimidade de ingressar na justiça, “têm a oportunidade de dar visibilidade à dívida histórica do Estado com os povos indígenas”.

“ Com tantas violências que aconteceram e que nunca foram punidos, mas que agora a gente pode falar por nós, ingressar na justiça e isso nós temos como uma iniciativa que possa de fato mostrar para o Brasil e para o mundo que os povos indígenas são parte do Estado Brasileiro, são pessoas que de fato nunca invadiram território, nunca destruíram. Pelo contrário, somos legítimos e originários desse Estado”, afirmou Batista.

Também cobrou a responsabilização não só do caso “ 10 Irmãos”, mas também de outros que acabaram ficando impunes pela morosidade do Estado e também dos próprios acusados que tentaram de toda forma, driblar a justiça e ficar impunes.

O Ministério Público Federal (MPF), cujo papel é a defesa dos direitos coletivos, tem um papel crucial em garantir que mais um caso de violência contra os povos indígenas de Roraima, não fique impune. Na audiência, o procurador-chefe, Miguel de Lima, afirmou compromisso de intervir junto à Justiça Federal, para dar andamento no processo o mais breve possível. Ficou de peticionar ainda, na quinta-feira (9), o pedido de audiência às lideranças indígenas.

O  MPF, cujo papel é a defesa dos direitos coletivos, tem um papel crucial em garantir que mais um caso de violência contra os povos indígenas de Roraima, não fique impune. FOTOS: ASCOM/CIR

As imagens do atentado que circularam o mundo foram feitas pelo cinegrafista indígena Aldenir Wapichana, que na época, fazia o registro do trabalho coletivo das lideranças. O mesmo foi perseguido, sofreu ameaças e até hoje, também continua à espera de justiça deste e outros casos de violência contra os povos indígenas da Raposa Serra do Sol, muitos deles registrados por ele. O caso ficou conhecido como “ 10 Irmãos” devido aos 10 indígenas que ficaram gravemente feridos, inclusive, com balas ainda alojadas no corpo e as sequelas que marcaram o dia 5 de maio. Fato que ainda é difícil ser narrado pelas vítimas, que em meios as poucas palavras e gestos, transmitem no olhar a memória daquele dia. 

No retorno ao território, passando pelos corredores do MPF, ficou a esperança, o clamor pela justiça, não somente pelo ataque no processo, mas toda violência sofrida ao longo da luta pela terra, há mais de 40 anos. 

O cenário de violência e até assassinatos de indígenas se estende nos outros territórios e em tempos atuais, conforme apontou o Relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), publicado em julho de 2023, apontando assassinatos ocorridos nos últimos quatro anos, de 2019 a 2022.  O levantamento apontou 281 indígenas assassinados no Estado e no Brasil, 795 indígenas.

Conforme o levantamento, a média de indígenas assassinados no período de 2019 a 2022 em todo o país foi de 198, ou seja, 75 casos por ano. Segundo o trecho do relatório, os casos foram relacionados à luta pela terra. “ O ano foi marcado por uma série de conflitos e de assassinatos de lideranças e de indígenas ligados à luta pela terra e pela proteção de seus territórios”, diz o trecho.